Dulce Pereira, 49 anos; residente na Palheira, Castanheira de Pera; casada, encontra-se connosco no Antigona onde, entre um bom café e um sentimento de manifesta satisfação, nos conta a sua história enquanto Vigilante no posto de Vigia do Santo António da Neve, Cabeço do Pereiro; na cordilheira da Serra da Estela, Serra da Lousã, concelho de Castanheira de Pera. Conhecida entre os pares como “Olho de Milhafre”, a Dulce é uma senhora bem simpática e sorridente.
Dulce Pereira (DP) - Sou Natural de Figueiró dos Vinhos e vivo em Castanheira há cerca de vinte e um anos. Em 2019, foi o ano que integrei o Grupo de Vigilantes. O amor que tenho pela natureza, levou a que aceitasse o convite feito pelo sr. Floriano, que fora também Vigilante há muitos anos. Foi ele que me convenceu a fazer a inscrição, tendo sido aceite de imediato, fui colocada no Santo António da Neve.
Horizonte (H) – Qual foi o sentimento ali chegada?
DP – Gostei logo do local. Mas na primeira noite... uma mulher às 23h00, atravessando aquele caminho solitário... Aquilo não é para qualquer um (desabafa)... Naquele breu... Um caminho rodeado de arbustos, árvores... Animais que aparecem à nossa frente...
H – ... E as histórias que se contam...
DP – Sim... Tudo isso nos passa pela cabeça... Não sou medrosa, mas uma mulher é sempre uma mulher (e sorri, de sorriso franco e aberto com os olhos de um castanho claro brilhantes).
H – Percorrer aquela estrada é fácil, principalmente à noite?
DP – Não... Nada fácil... Percorrer aquela estrada no estado em que está é péssimo... Só para ter uma ideia, já estraguei lá três carros... Reclamamos e ninguém faz nada.
H – Toda ela?
DP – Especialmente aquela parte já na subida para o Santo António... Demoramos mais tempo a chegar ao Posto de Vigia do que até chegar ali...
H – Porque é que te chamam de ‘Olhos de Milhafre’?
DP – Olha... Foi num jantar do grupo, perguntaram se era de Castanheira e disseram logo “Ah! Tu é que és o Olhos de Milhafre”. Também quis saber porquê e disseram-me: “tu vês muita coisa”...
Quisemos saber o que terá motivado a Dulce a aceitar aquele serviço. Afinal, trabalhar sozinha, no alto da montanha e muitas vezes à noite não é fácil.
DP – Primeiro o ter que aprender com os equipamentos... Aquela bússula com a mesa onde se encontram as coordenadas... Aquele óculo... Saber ‘movimentar’ a agulha daquela mesa que marca o norte, este, oeste... Na direção do que estamos a ver… Claro que tem que haver mais um ou dois colegas, no mínimo, a fazer o mesmo para conseguirmos achar o azimute e termos os dados praticamente exatos para o alerta. Depois o facto de estarmos todo o tempo sozinhos, aprendemos a amar aquele local... É quase como um lar... Pelo menos para mim.
H – Um local sagrado?
DP – Sagrado... Mesmo um local sagrado! Dali avisto a Serra da Estela, a Figueira da Foz... Em dias sem neblinas vê-se o mar... Vê-se o Sol a nascer e a por-se, ao longe... O Trevim... Castanheira... Em dias de boa visibilidade consigo avistar até cerca de setenta a oitenta quilómetros de distância. Estou no topo da Serra, da Montanha...
E aquele céu? (todo o rosto se ilumina) Aquele Céu é único! Tanto de dia como de noite. Aquelas nuvens brancas por baixo de um azul límpido, lembra o mar calmo...
H – Qual o sentimento que mais te desperta?
DP – Paz... Calma... Muita calma e paz. A primeira vez que se vê é indescritível! Nunca há um dia igual. Nem noite. São sempre olhares diferentes da mesma paisagem.
Há dias que temos mais movimento, devido aos alertas, claro está. Temos que estar sempre alerta, não é? Com alguns grandes percalços, por vezes...
H – Qual foi o pior dia passado lá em cima?
DP – O pior dia?... (respira fundo e vê-se tristeza no seu rosto)... Posso começar pelos incêndios deste ano... Olhando lá de cima para aqueles lados, fazia-me lembrar aqueles filmes com tornados horríveis... Foi muito mau... Muito mau mesmo... Estes dias ficam na memória. Não conseguimos esquecer... Estamos de rádio ligado... Escutamos noticias... Apercebe-mo-nos do se está a passar naqueles locais, mesmo o que muitos desconhecem…
Desviamos o rumo da conversa, até porque a Dulce não esquece o ia em que o Bombeiro da Lousã veio a falecer numa das encostas ali perto e perguntámos:
H – Parece-te que a Serra é devidamente protegida?
DP – Não... Sinceramente acho que não... Se está inserida na Rede Natura, deve sê-lo para tudo... Não só para o que interessa. (faz uma pausa enquanto baixa os olhos) Por exemplo, os animais deveriam ser ali intocáveis...
E tocamos numa ferida sentida por alguns:
H – Queres dizer que há pela Serra, no geral, atividades que não deveriam existir?
DP – Digamos que sim...
Esclarece que temos que lembrar sempre que existem atividades licitas, mas muitas há que são ilícitas.
O animal preferido da Dulce é o cavalo. Na Serra, adora ver os veados imponentes. Sorri com um franco sorriso, e conta que ver aquele machos mesmo ao seu lado, ter tido a oportunidade de ter assistido ao vivo a uma luta de machos, poder apreciar aqueles majestosos seres com hastes enormes, é para a Dulce quase que estar num conto de fadas bem no seio da Serra da Lousã. Ver que “eles ficam ali especados a olhar para nós e não fogem, parece que sabem que não lhes queremos fazer mal”.
Não deixa de dizer que são reconhecidos/as pelo trabalho que fazem. Que sabem agradecer. Reconhecem o valor de cada um, desde os seus superiores, aos bombeiros e até a população.
Terminando a nossa conversa, Dulce confessa que quando inicia o seu serviço “Costumo dizer que vou fazer o meu retiro de verão”, confessa que gosta de Reiki e que ali até está muito em Paz e que se sente mais perto de Deus, ou do Universo, como quiserem chamar.
Se pensa em desistir? Claro que não. A Dulce espera continuar durante muito tempo a fazer o que gosta e a ajudar à sua maneira a proteger a Serra, a nossa e a de outros e os bens de cada um.
H – A prevenção contra incêndios deve somente existir no verão?
DP – Acho que não... Não previnam os incêndios só na época de verão. A prevenção tem que começar muito mais cedo com a limpeza das matas... Deveríamos começar, por exemplo da nossa parte, vigilantes; em Maio. Nós aqui, Castanheira, começamos sempre um pouco mais tarde...
H – Acreditas que a prevenção obrigatória para a população é suficiente ou deveria haver outra forma de atuar, com o Estado a ajudar nesse tipo de prevenção?
DP – Sabes? Há pessoas que têm terrenos e não têm forma ou posses para os mandar limpar... Por outro lado há pessoas que têm dinheiro, têm posses e não o fazem... Tem ficado tudo um pouco à consciência de cada um... Depois acontecem desgraças e grita-se aos sete ventos, chama-se por socorro... Por outro lado só se lembram dos bombeiros no verão...
Fez-se silêncio. A Dulce olhou diretamente para nós e ficou em silêncio. Pedimos que deixasse uma mensagem para os nossos leitores e a Dulce respondeu de imediato:
DP – Venham inscrever-se. Desde os 16 aos 65 anos, todos se podem inscrever. Basta dirigirem-se por exemplo, entre Janeiro e Fevereiro, ao posto da GNR e dizer que o querem fazer. Devem ter transporte, um registo criminal limpo... Sei que há muito mais pessoas a amar a natureza com eu. Natureza inclui os Animais, a Floresta, as Pessoas... Tudo! Um que seja é uma grande ajuda para todos”.
E deixámos a Dulce com a sensação de que muitas histórias ficaram por contar. Certamente que haverá Histórias interessantes de bons ou mesmo menos bons momentos passados nos postos de vigia.
Bem hajam, vigilantes!
FILIPE LOPO [Texto e Fotos]