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Resineiro, a profissão ancestral que é património imaterial da Picha

Marco Marques, 30 janeiro 2025

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Resineiro, a profissão ancestral que é património imaterial da Picha
O Município de Pedrógão Grande apresentou ainda recentemente o projeto “Rota da Picha e do Resineiro”, para promover e valorizar o património cultural e imaterial daquela aldeia. O Horizonte foi à procura de testemunhos sobre esta profissão ancestral e teve como primeiro interlocutor Aires Martins, um dos últimos resineiros da região.
Foi na Associação da Picha, pequena aldeia do concelho de Pedrogão Grande, que encontrámos o nosso entrevistado. Sentados à mesa no salão de festas, com a companhia de Gonçalo Reis, tesoureiro da associação, ouvimos Aires Manuel Reis Fernandes Martins. Nascido em 1957, ainda na ‘juventude’ dos seus sessenta e sete anos, mostrou de imediato satisfação por não deixarmos esquecer este tema que lhe é tão querido. 

Jornal Horizonte (JH) – O Sr. Aires foi resineiro...
Aires Martins (AM) – Fui resineiro durante vinte anos seguidos... Desde os meus treze anos... Mal tive tempo de fazer a quarta classe... Dos sete aos onze anos saía da escola e tinha que tratar do gado… Também ia ao mato... aos treze fui logo para a resina. Acompanhava o meu pai, foi com ele que aprendi…

JH – Quantos pinheiros tinham à vossa responsabilidade?
AM – O meu pai e eu começámos com oito mil... Nossos e alguns outros alugados, de outros proprietários… Mas vinham alguns proprietários de alguns terrenos, que se zangaram com outros por qualquer motivo como problemas de contas e quezílias e iam passando os contratos para o meu pai. E passámos de oito para catorze mil. Como gostava do serviço feito, mas bem feito, eu esforçava-me e a certa altura ofereceu-me parte da área ou cem contos por ano, no fim da campanha, ou se eu quisesse dava-me preferência, dava-me sociedade.

JH – Cem contos era muito dinheiro...
AM – Era... Mas também havia despesas.

E a história continua com as peripécias do resineiro pelos pinhais afora. Era também vigilante da natureza, à sua maneira, sem o saber. Não lhe passava pela cabeça que a sua profissão era também ela uma forma de prevenção contra incêndios. Os pinhais estavam limpos muito à custa do trabalho e sacrifício do resineiro.

JH – Como é que fazia sair a resina do pinheiro?
AM – A renova... Que era a aplicação do ácido e mais tarde de uma pasta. Era isso que obrigava à saída da resina. Era um serviço que tinha que ser muito bem feito por nós.

O pai era exigente no serviço. Só assim poderia obter um bom resultado sem ferir ou matar um pinheiro. Fazia-se a renova com a sangria feita à medida, porque, diz “se viesse a fiscalização dava multa e era pesada”. Explica ao pormenor:
AM – A talha, peça em madeira, uma cavacazinha ou carcódia; feita com uma inclinação específica para puxar a resina para o meio a fim de que caísse pela bica diretamente no púcaro, sem desperdiçar. Sem que escorresse pelos lados dos pinheiros... Sempre com aquela certeza até ao final da campanha. E as bicas limpas. Porque se as bicas não fossem limpas a resina passava entre a bica e o ‘calo’ (resina seca) caía para o chão e, sendo limpa, vinha pelo centro da bica até ao púcaro. Com o maço batia-se o entalhe, o mete bicas... O maço a bater, a bica entrava... Punha-se uma cavilha para segurar o púcaro.

JH – O ácido que utilizava era tóxico?
AM – Vinha da fábrica da resina... Era tóxico e queimava a roupa... Fazia buracos quando caía e no verão, como se andava de mangas curtas, causava bastante comichão. Mas aguentava-se...

JH – Qual era a quantidade de resina que tiravam nos catorze mil pinheiros?
AM – Ora... Nesses catorze mil nós fazíamos a renova sozinhos... Mas há uma coisa que o senhor talvez não saiba... Depois da renova, tínhamos dois colhedores (dois homens a colher a resina) e nós fazíamos um campo de seis bidons naquela área.. Nós com o boi ainda colocávamos em carregadoiro, no estaleiro, quarenta e tal, cinquenta bidons. Cada um tinha duzentos e setenta quilos de peso bruto, o que dava em média duzentos e dez quilos por cada um...

JH – Com tanto trabalho, como faziam as refeições? Como comiam?
AM – (O rosto de Aires fica agora mais endurecido) Olhe... Levávamos um saquito pendurado à cintura... Às nove e meia, dez horas, comíamos umas sandes d’água... à uma hora, hora e meia, a minha mãe ia-nos levar o almoço, com uma canastra à cabeça... Levava um garrafão com água para lavarmos as mãos e a cara do ácido... Bebíamos um pouco para lavar a boca das impurezas e a saliva seca... Só depois de uma ou duas goladas que deitávamos fora, é que bebíamos a água... Quando havia vinho, bebíamos o vinho, senão era água e sabia muito bem (ri).

JH – Como é que ela sabia onde andavam?
AM – Antes de sairmos, o meu pai dizia-lhe que fosse ter connosco a tal parte. Ele sabia mais ou menos por onde andávamos pelas propriedades. A minha mãe chegava ao cabeço e começava a gritar pelos nossos nomes e logo sabíamos onde estava. Íamos ter com ela, para que não descesse a encosta até ao barroco e tornasse a subir.

JH – Havia chatices com os colhedores... 
AM – Olhe, nunca me chateei com ninguém. Nem com resineiros, colhedores... Nunca tive esses problemas. Mas houve quem tivesse sérias zangas ao ponto e irem para o hospital... É verdade! Tudo porque o resineiro se enganara e pusera uns pinheiros, que eram para madeira, à resina. Olhe... Engataram-se à porrada, um com o ferro da resina outro com uma faxina... e eu com vinte anos na resina, nunca tive problemas. Não é que não houvesse quem os procurasse...

JH – Qual era a vossa área de resinagem e como faziam para que não entrassem nas áreas de outros resineiros?
AM – A nossa área ia desde a Derreada Cimeira, Derreada Fundeira, Venda da Gaita até perto da Tojeira, Ousenda, aqui esta parte da Picha... Era aqui toda esta área... Era grande... Catorze mil pinheiros, está a ver. Bom... Como é que conhecíamos a nossa área? Era fácil. Eram as terras de cada proprietário, as estremas estavam feitas. Era sorte por sorte. E nós pintávamos um sinal, sempre a letra do nosso nome, no meu caso era um A; junto dos marcos, num pinheiro alto para balizar a nossa área, de um lado e do outro. Era fácil. E corria bem!

JH – Nunca deixou a terra por amor à arte ou por amor à família?
AM – Por tudo! Não... Nunca quis sair. Gostava do que fazia e mais pela minha mãe. Via o sacrifício que ela fazia (o seu rosto abre-se num sorriso sincero). Até porque o meu pai teve um problema no estômago... Foi o Dr. Delmino Cortez da Castanheira, que o tratou... A minha mãe, depois da operação do meu pai, fazia-nos o comer todo passado. O sacrifício que ela fazia e o amor que eu tinha pela arte... Apercebi-me que isto era rentável. Embora eu tivesse uma irmã que de vez em quando ia ajudar na recolha da resina. Então percebi que se virasse as costas a isto, ia tudo abaixo. Era rentável, mas tinha que ser aproveitado.
 
JH – E hoje se pudesse, voltava à resina?
AM – Voltava! (diz sem hesitar) E continuava sem problema algum. Com a prática que tenho, continuava!

Havia muito que contar. Tinha que levar alguns púcaros na sacola feita dos sacos de serapilheira, “que eram da pulgueira, do amónio”, a tiracolo, indo-os buscar aos montes que deixava espalhados, pela área da resinagem, sempre que havia necessidade de os substituir ou colocar novos.
Lembra-se que deixou de fazer resinagem quando do grande incêndio em 1991, no século passado... Queimaram-se os pinheiros. Acabou na zona a matéria prima. O que sobrara não era suficiente. Agarrou-se à exploração de madeira, plantação de eucaliptos e seu desbaste... Começou a lavrar terras por conta própria com o trator que entretanto comprara. Tirava cortiça, primeiro como empregado, depois por conta própria... Oito a dez horas por dia. Era preciso trabalhar para ganhar o sustento da casa. Tinha casado, entretanto nasceram os filhos.
JH – Caro Aires... Alguns dizem que o resineiro é pobre, outros dizem que enriquece...
AM – (É de sorriso largo que responde) Não dá para enriquecer, não... Dá para comer, para viver, mas temos que nos esforçar. Não se pode olhar à camisola nem à pele. Tem que andar no mato. Atravessar silvas... Calcar tojos... Não se pode olhar para trás.

JH – A colheita da resina tinha vantagens para os proprietários, ou não?
AM – Já se pagava oito escudos por sangria... Oito e meio... Depois nove e mais para o fim já se pagava dez escudos por cada uma. Quando comecei já se pagava oito escudos por sangria... Já era muito dinheiro naquele tempo. Ah pois era... Mas os proprietários também tinham que pagar as suas contribuições, não é?

JH – A resinagem durava quanto tempo?
AM – Então... Começava-se em Março, Abril, até final de Outubro. No dia de todos os Santos já era proíbido tirar resina! A raspa era feita já em Novembro, Dezembro.

Não se tirava mais, diz, porque também se cansava mais o pinheiro e secava-o. “Não podemos esquecer que a resina é o sangue do pinheiro”, lembra. Não nos diz se alguma vez terá sido ‘fiscalizado’, passando por cima da pergunta de forma ágil e ligeira.

JH – Conheceu a sua esposa na resina?
AM – Não foi na resina, mas foi no calçado para a resina (e o sorriso continua) porque tinha que ir aos Padrões, ao sapateiro...

JH – Então conheceu-a no sapateiro?
AM – Não! (quase que solta uma gargalhada) Já lhe conto... A casa onde ela estava a trabalhar, pertencia aos meus tios e eu fui visitá-los e estive ali um bocado a conversar quando a vi. Teria eu doze anos e ela onze... Ou o contrário, talvez... Ela tinha a quarta classe e eu também. E nunca mais a esqueci. Um tempo mais tarde, num bailarico chamei-a para dançar. Quando tudo terminou pedi-lhe o nome, depois a morada e começámos a escrever um ao outro... E ia vê-la de quinze em quinze dias, de motorizada. Isto foi em 1980... Casei em 1982. Faz agora 43 anos. Casámos em Fátima.

Aos filhos, um casal; embora os acolhesse de braços abertos, é franco e sincero ao dizer que se estudaram, a profissão deles é outra. Mas tem a consciência de que não há possibilidades de emprego para poderem voltar.
 
Em atalho de foice, Gonçalo Reis, faz a pergunta final: – Qual era a finalidade da resina colhida?
AM – A resina saía do estaleiro, onde era carregada para a fábrica. Na fábrica era queimada numas caldeiras próprias em inox, grandes; de onde saíam dois produtos: – O Pez e a Aguarrás. O pez louro ia em bidons de duzentos, duzentos e trinta litros. A aguarrás ia em cisternas que seguiam para o cais em Lisboa, seguindo num navio para fora. Aí não sei para onde… A aguarrás era utilizada nas farmácias e outras utilidades... O pez louro não sei… sei que saía logo tudo para exportação. 

Aires Martins nunca sentiu a necessidade de sair da sua terra. As aldeias e o seu ofício, juntamente com a família e o trabalho na lavoura e nas suas terras, eram o suficiente e agarravam-no. No entanto ficamos com a sensação que muito mais haveria para contar, relativamente à aldeia da Picha. Um lugar do concelho de Pedrogão Grande, rodeado de pinhal e eucaliptal. O nome, provavelmente deriva de ‘PICHO’, a ‘pequena estaca’ em madeira, ou cavilha;  aguçada numa ponta para ser colocada no pinheiro (agora grampos), por baixo do púcaro da resina, para este assentar e ficar seguro entre a bica e picho enquanto a resina escorria para o encher.
Deixamos a Associação de Melhoramentos, Cultura e Recreio da Picha, com o convite para voltarmos. Com certeza que o faremos em breve.

Filipe Lopo (Texto e Fotos)
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